terça-feira, 22 de março de 2011

Unidade II. História da História: os diversos regimes de historicidade.

Unidade II. História da História: os diversos regimes de historicidade.

2.1 A mentalidade Histórica: a relação que o homem estabelece com o seu passado
“Quanto tentamos responder a pergunta: o que é a história? Nossa resposta, consciente ou inconscientemente, reflete nossa própria posição no tempo e faz parte de nossa resposta, uma pergunta mais ampla: qual a visão da sociedade que vivemos?” (Carr, O que é História?)
Ou ainda Le Goff, quando coloca: “a relação que a psicologia coletiva mantêm com o seu passado”
Neste sentido, a história da história deve levar em consideração tanto o contexto social da produção histórica (livros, textos, imagens, etc), quanto aspectos da memória coletiva. Daí ser relevante a afirmação de Le Goff: “A história não deve se preocupar apenas com a produção histórica profissional mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica, ou melhor, a mentalidade histórica de uma época”.
Desta forma, é plenamente possível estabelecer uma distinção nas formas de conceber e registrar a história ao longo do tempo que é balizada pelas transformações sociais e de mentalidade das diferentes épocas históricas.

2.2 Referências temporais para uma história da história.

a) Narrativa mítica e a construção da representação histórica: o registro da vida política dos anais, o papel do mito nas sociedades antigas: Egito, Mesopotâmia, China e Índia.
·       Mito como referência explicativa da realidade circundante: explicações mágicas e religiosas para eventos reais
·       Transmitidos pela tradição oral
·       Concepção circular do tempo, sem cronologia ou datação: o princípio das coisas, primórdios, tempos imemoriais - tempo sagrado e não datado.
·       Mito tomado como modelo, exemplo e precedente.
·       Outro tipo de registro: nas sociedades orientais (Índia e China), os Anais remontam ao século XVIII a.C. , e compõem um estilo de registro muito preciso, consagrado a sucessão de fatos relativos às dinastias imperiais.

b) Narrativa histórica de base factual: A antiguidade clássica, Grécia e Roma.
·       Sécs. V-IV (585 a.C), Heródoto qualificado por Cícero, como o “pai da História”. Foi o primeiro a utilizar a palavra história, com sentido de investigação e perenização da ação humana.
·       Tipo de Narrativa: trecho redigido por Heródoto na introdução do seu livro: “Histórias”: “Eis a exposição do inquérito empreendido por Heródoto de Halicarnasso para impedir que as ações realizadas pelos homens se apaguem com o tempo”
·       Temas: Guerras persas; outro grego, Tucídides, um general, relataria os eventos da guerra do Peloponeso, da qual participou. Daí Finley chamar atenção de que para a concepção de tempo/passado para os gregos só era possível história contemporânea. Preocupavam-se com os relatos dos costumes, os interesses econômicos, a relação com outros povos, etc.
·       Persistência da narrativa mítica como forma de elaboração do passado
·       Roma: Políbio (II a.C.), preocupação com a verdade dos fatos, mas terminou por narrar as conquistas do Império Romano

c) Poder e saber: O conhecimento histórico no período medieval - o processo de cristianização; o advento e disseminação da Escolástica e a prioridade da História eclesiástica.
·       A implantação e expansão do cristianismo no mundo antigo impuseram uma nova forma de conceber o tempo, tendo em vista, o caráter datado e escatológico da religião cristã.
·       Escolástica: o advento do pensamento escolástico se faz através da elaboração de um método de leitura e interpretação de autores clássicos (principalmente Aristóteles). Tal método pressupõe a existência de dogmas a partir dos quais toda e qualquer interpretação deve se processar. Estes dogmas eram estabelecidos e divulgados, com base nos escólios, pela Igreja devido ao controle dos textos e documentos antigos nas abadias e nos mosteiros. Daí a produção intelectual limitar-se aos mosteiros.
·       Temas e método: priorização das hagiografias (vida dos santos), gesta dos reis, além da temática limitada a historiografia medieval carecia de um método crítico ficando restrita ao estilo da crônica e dos anais.

d) História e Erudição: o retorno aos clássicos, o movimento antiquarista e o advento do método crítico no século XVII - DE RE DIPLOMÁTICA (D. Mabillon - 1681).
·       O movimento humanista e renascentista transfere do céu para a terra as preocupações humanas.
·       A filosofia escolástica se vê invadida por um retorno aos clássicos pensadores greco-romanos, no original.
·       Em decorrência de tal interesse desenvolve-se um trabalho de erudição para avaliar a veracidade e autenticidade dos textos antigos. Revitaliza-se o estudo das línguas, através da filologia e amplia-se a noção de documento aos objetos: moedas e inscrições.
·       O movimento antiquarista promove a descoberta e a manutenção de antigos documentos e peças. Catalogar, inventariar, compor coleções são trabalhos eruditos. A erudição preocupava-se mais com a guarda dos materiais históricos, do que com sua interpretação.
·       Publicação do primeiro tratado de erudição: século XVII - DE RE DIPLOMÁTICA (D. Mabillon - 1681).
·       Período em que se desenvolvem ciências que auxiliam o trabalho de crítica interna e externa: numismática, epigrafia, cronologia, heráldica, etc. Período em que se desenvolvem ciências que auxiliam o trabalho de crítica interna e externa

e) História e Filosofia: O conhecimento histórico na época das Luzes, a relação entre história e filosofia; a construção de uma concepção de história com bases em princípios universalizantes (Voltaire) e a história nacional.
·       Os filósofos assumem a história como preocupação: o iluminismo traz para o centro da reflexão histórica a idéia de progresso. Expansão da burguesia para o mundo extra-europeu.
·       História nacional pautada em princípios românticos e ideais, tais como: espírito do povo, caráter nacional, civilização ocidental, progresso racional, etc.
·       História ideológica: A história filosófica é abertamente partidária e sofre influência das condições sociais e políticas do país que o historiador se insere.
·       No final do século XVIII a corrente liberal buscou explicar racionalmente a sociedade burguesa, utilizando-se conceitos como progresso e liberdade como valores inerentes ao processo histórico, a princípio contra a hegemonia do Rei e da Igreja, e no final do século XIX, contra o advento dos movimentos sociais populares.

f) História e ciência: a história e os cânones do conhecimento científico, o método positivista da escola metódica, a questão da objetividade da narrativa histórica.
·       O século XIX, principalmente depois de 1870, assiste o triunfo da história cientificista, fortemente influenciada pela concepção naturalista de evolução humana, esquematicamente transferida para o desenvolvimento das sociedades.
·       A escola metódica (também conhecida como positivista), reabilita o método critico do sec. XVII na aplicação da doutrina positivista que buscava uma narrativa imparcial dos fatos, a moda da escola historicista alemã, cuja máxima era relatar os fatos “tal como aconteceram”. Acreditando na possibilidade de  neutralidade do narrador e tomando a história política + narrativa dos grandes feitos + nas datas importantes + por grandes homens= paradigma de história humana.
·       Institucionalização da história como disciplina universitária, com regras e técnicas.
·       Fora da academia a militância intelectual e política, coloca a história no centro da pauta para explicar o processo de transformações das sociedades: materialismo histórico e materialismo dialético - Marx e Engels.
·       História como o estudo das relações sociais, no tempo, com vocação para a totalidade.
·       Historicismo: marca da concepção histórica presente tanto numa perspectiva positivista de história quanto no materialismo histórico. O historicismo conclama a relativização da análise dos fatos humanos, buscando compreendê-los na sua especificidade histórica. Só que o positivismo o apreende de uma forma parcial e mecanicista e o materialismo histórico de uma forma crítica, problematizadora e dinâmica.

Glossário.
Verbete: escolástica
[Fem. substantivado do adj. escolástico.]
S. f. Hist. Filos.
1. Doutrinas teológico-filosóficas dominantes na Idade Média, dos séc. IX ao XVII, caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a fé e a razão, problema que se resolve pela dependência do pensamento filosófico, representado pela filosofia greco-romana, da teologia cristã. Desenvolveram-se na escolástica inúmeros sistemas que se definem, do ponto de vista estritamente filosófico, pela posição adotada quanto ao problema dos universais [q. v.], e dos quais se destacam os sistemas de Santo Anselmo [V. anselmiano.], de São Tomás [V. tomismo.] e de Guilherme de Occam [V. occamismo.]
[Sin. ger.: escolasticismo.]
Verbete: escólio
[Do gr. skólion.]
S. m.
1. Comentário destinado a tornar inteligível um autor clássico; esclarecimento.
2. Explicação ou interpretação de um texto.
[Cf. escolio, do v. escoliar.]


Texto para discussão François Hartog e Jacques Le goff

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