terça-feira, 22 de março de 2011

Unidade I - História e memória

Unidade 1: História e memória

O historiador francês Pierre Nora é diretor editorial da prestigiosa editora francesa Gallimard, desde 1977 ele dirige a École des hautes études en sciences sociales, tendo sido o fundador a revista acadêmica Le Débat e ter dirigido desde 1984 o projeto editorial ‘Os lugares de memória’. Na introdução dos quatro volumes do lugares de memória, obra dedicada a história contemporânea na França, Nora discute o processo contemporâneo de extermínio de memória-história e sua substituição pelos lugares de memória. Neste processo a História, como conhecimento formulado assume o papel de mediador do passado, daí o grande interesse em se estudar a história da história. Este retorno a si próprio, este tormar-se como objeto de estudo indica a transformação da História-memória em História-crítica e a própria passagem da memória a condição de objeto de estudo da história.
Desenvolve tais idéias em três momentos:
1.    O fim da História-memória
2.    A memória tomada como história
3.    Os lugares de memória, uma outra história.

I O fim da História-memória
Aceleração da História, tomada de consciência do passado enquanto tal, fim da memória, como fio condutor da experiências sociais. Para Nora o ressurgimento dos lugares de memória significa o fim dos meios de memória: a consciência do passado como ruptura em relação ao presente, o torna objeto de conhecimento. Neste processo rompe-se com a idéia de continuidade própria à memória, no entanto a memória residual localiza-se em lugares determinados.
O fim da história-memória localiza-se, segundo o autor, no advento da sociedade industrial, acirrada pelo processo de mundialização e fim dos grupos comunais, cuja memória ainda estava fortemente calcada na tradição.
O fenomeno de aceleração da história opôs história e memória. As sociedades ditas tradicionais, pelo ritmo diferenciado, elege a memória como forma de rememorar o passado. Ao passo que as sociedade induatriais e urbanizadas, elegem a História como forma de conhecimento do passado, relegando ao esquecimento as multiplas formas de elaborar uma representação de passado, como produção de sentido social no presente. O discurso crítico sobre o passado, evolve um lugar social de produção do conhecimento histórico e um sujeito autorizado a emitir esse discurso: a disciplina histórica e o historiador cumpriram esse papel.
Memória transportada pela História: a diferença entre história e memória está no papel mediador da História. Na memória ato e sentido fazem parte de um mesmo movimento, na história o ato é interpretado pela perspectiva de um outro sentido, pleno de estanhamento e distanciamento.
Memória e História: diferenças básicas: A história se opõe a memória por ser uma operação intelectual de conhecimento. A crítica histórica destrói a memória ao torná-la suspeita, ao imputar-lhe um sentido exterior.
 O despertar da consciência historiográfica, como pode ser interpretada?
Partindo-se de uma perspectiva histórica bem própria ao XIX, a História estava calcada na busca dos elos de ligação do passado, o passado era o acontecido, o memorável, a idéia de uma memória positiva permeava a prática historiadora de antanho. Hoje, o que temos? Um passado dessacralizado, múltiplo, interpretável, calcado muito mais nos testemunho do fato do na idéia de um fato em si mesmo.
Os objetos da história da história - a idade historiográfica: “interrogando-se sobre seus meios materiais e conceituais, sobre os procedimentos de sua própria  produção e as etapas sociais de sua difusão, sobre sua própria constituição em tradição, toda a história entrou em sua idade historiográfica, consumindo sua desidentificação com a memória. Uma memória que se tornou, ela mesma, objeto de uma história possível”. (p.11)
No século XIX a prática historiadora calcava-se no trinômio: Nação, memória e história. “História santa, porque nação santa. É pela nação que nossa memória se manteve no sagrado”.
No século XX a sociedade substitui a nação. A sociedade volta-se em busca de seu passado: “com a emergência da sociedade da sociedade no lugar e espaço da nação, a legitimação pelo passado, portanto pela história, cedeu lugar à legitimação pelo futuro. O passado, só seria possível conhecê-lo e venerá-lo, e a nação, servi-la; o futuro é preciso prepará-lo.”(.12)
Os três termos recuperaram sua autonomia. A nação não é mais um combate, mas um dado; a história tornou-se uma ciência social; e a memória um fenômeno puramente privado. A nação-memória terá sido a última encarnação da história-memória.
O estudo dos lugares se direciona em dois sentidos:
1- pensar a história como lugar de memória.
2- fim da memória nação e o estabelecimento de um novo olhar, o de uma história reconstituida.
Definição dos lugares de memória: “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. [...]. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua trnasformação e sua renovação [...]. Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos de testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade[...]. Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais.
Os lugares de memória na oposição memória/história: “[...] Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória”. (p.13)
Os lugares de memória estão associados a transformação de uma história totêmica para uma história crítrica, onde “não mais se celebra a nação, mas se estudam suas celebrações” (p.14)

II. A memória tomada como história
Discute o redimensionamento contemporâneo das palavras memória e história.
Imbricadas, quase sinônimas. Como a memória se metamorfoseou em história. Como a memória de voluntária e deliberada, de imediata e espontânea, passou a ser um fenômeno psicológico, individual e subjetiva, ao invés de social, coletivo e globalizante?
Distingue três tipos de memória: memória-arquivo, memória-dever e memória-distancia.
 a) memória-arquivo: preservação integral do presente e do passado, concede-se ao mínimo vestígio do presente o estatuto de dao arquivável, criam-se instituições de memória, tudo se torna memorável, dilata-se a materialização da memória. Produzir arquivo torna-se um dever
b) memória-dever: memória historicizada, invenção de memória através de estratégias científicas, como é o caso da História da História Oral. Uma memória que vem de fora, interiorizada como dever, não uma prática social: “A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de sua própria história. o dever da memória faz de cada um um historiador de si mesmo. o imperativo da história ultrapassou muito assim, o círculo de historiadores profissionais[...] O fim da história-memória multiplicou as memórias particulares que reclamam sua própria história” (p.16)
c) Memória-distancia: No fim do século XIX a memória torna-se gradativamente um fenômeno individual, par e passo, ao processo de desabamento do mundo rural e das chamadas sociedades tradicionais. Cita como exemplos de trabalhos que refletem sobre a memória do ponto de vista individual: a filosofia de Bergson, a psicanálise de Freud e a literatura de Proust.

Inaugura-se um novo regime de memória, questão daqui por diante, privada.  A individualização da memória, cria um novo tipo de suporte, os homens-memória. A História-memória tomava o passado não como verdadeiramente passado, algo que com um esforço de lembrança se poderia ressuscitar, presentificar, reconduzir e atualizar. O presente o ancorava. Com a Históra-crítica o passado distancia-se: “O passado nos é dado como radicalmente outro, ele é esse mundo do qual estamos desligados para sempre.” A idéia de descontinuidade penetra na relação do homem com o passado, concedendo estatuto histórico a diferentes objetos.
Neste processo a própria percepção de quem estuda história se transforma. Não mais procuramos o igual no passado, mas a diferença, a alteridade: “Não mais uma gênese, mas o deciframento do que somos à luz do que não somos mais”. Concomitantemente, não só o passado modifica seu estatuto como o próprio historiador vê o seu papel social recolocado: passa a reconhecer o seu papel na interpretação e discutir o dado de subjetividade do conhecimento históriador. No limite do processo de fim da história-memória o homem-memória não mais existe, em substituição introduz-se a idéia de lugares de memória.

III. Os lugares de memória, uma outra história.
Constituição: “São lugares nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos”. (p.21)
Os lugares de memória são frutos de uma ação consciente, de uma vontade de memória.
A função dos lugares de memória é a de reter o esquecimento.
Apresenta dois exemplos: um calendário revolucionário que não vingou e um manual de história que tornou-se recorrente à memória.
Existe uma diferenciação histórica para os lugares de memória, estes mesmos devem ser historicizados. Toda a constituição é um lugar de memória mas as diferentes constituições devem ser tratadas diferentemente como lugares de memória.
Por exemplo: os acontecimentos e os livros didáticos são lugares de memória.
Classificação dos lugares de memória: “Desde os lugares mais naturais, oferecidos pela experiência concreta, como os cemitérios, os museus e os aniversários, até os lugares mais intelectualmente elaborados, dos quais ninguém se privará; não somente a noção de geração, já evocada, de linhagem, de “região-memória”, mas aquela das “partilhas”, sobre as quais estão fundadas todas as percepções do espaço francês, ou as de “paisagem como pintura”.[...] Se insistirmos no aspecto material dos lugares, eles próprios se dispõem num vasto degradê. [...]
Apegar-nos-emos, ao contrário à dominante funcional? Desdobrar-se-á o leque dos lugares nitidamente consagrados à manutenção de uma experiência intransmissível e que desaparecem com aqueles que o viveram, como as associações de antigos combatentes, aqueles cuja razão de ser, também passageira, é de ordem pedagógica, como os manuais, os testamentos ou os “livros de razão” que, na época clássica, os chefes de família redigiam para uso de seus descendentes. Seremos nós, enfim, mais sensíveis ao componente simbólico? Oporemos, por ex., os lugares dominantes aos lugares dominados. Os primeiros espetaculares e triunfantes, imponentes e geralmente impostos, quer por uma autoridade nacional, quer por um corpo constituído, mas sempre de cima, tem, muitas vezes, a frieza e solenidade das cerimônias oficiais. Os segundos são lugares de refúgio, o santuário das fidelidades espontâneas e das peregrinações do silêncio”. (p.26)
A classificação pode ser ampliada, não há necessidade de rigidez tipológica.
Os lugares de memória se auto referecializam, são signos do passado, no seu dado material de índice: “Nesse sentido, o lugar de memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações”
Objetos da história, os lugares de memória são apreendidos no imediato, mas traduzidos por uma trama teórica, por um investimento de sentido histórico.
A memória tomada como objeto da História: “nasce um novo tipo de história que deve seu prestígio e sua legitimidade à sua nova relação com o passado, um outro passado”

Nora, Pierre. “Entre memória e História: a problemática dos lugares”,IN: Projeto-História, PUC, SP, (10), dez. 1993, trad. Yara Aun Khoury, pp. 7-28
Enciclopédia Einaudi, Vol. I Memória-História, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985.

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